Tuesday

Primeira Página

“Não gostas de mim, nunca gostaste. Pior, tu não gostas de ti próprio e por isso mesmo duvido que gostes sequer de alguém. Não sabes, nem queres, ser feliz, apesar de insistires que é tudo por quanto anseias. Assim que a felicidade ameaça, retrais. Foges e isolas-te no teu buraco escuro ao qual chamas casa apesar de todos saberem, e ninguém melhor do que tu, que não passa de um beco sem saída onde te afogarás em lágrimas e no qual conviverás só e apenas com os teus próprios demónios.” Ela vira costas fazendo os seus cabelos escuros, que tantas vezes fiz passarem pelos meus dedos, esvoaçarem agressivamente na minha direcção como se de uma fria estalada se tratasse, e parte em direcção ao esquecimento.

Poderia tomar estas palavras como um ataque insensível de alguém a quem roubaram o, e não um, sonho. A quem mais nada sobrou senão o poder acutilante da vingança no seu estado mais selvagem: as palavras. Mas não as tomo como um ataque. Estou demasiado ocupado a pensar que já ninguém fala assim, tão eloquentemente, senão em livros. Além disso, ela está muito perto de ser a senhora da razão e o meu silêncio é, assustadoramente, comprometedor.
Enquanto dou por mim a absorver tudo o que foi dito e a analisar mais um relação que eu, tão profissionalmente destruí, noto uma ligeira pausa na sua marcha apressada. Os seus movimentos são agora visivelmente reflectidos e menos guiados pela emoção. Está, obviamente, a pensar nas últimas palavras que (pensa ela) me dirigirá, pois a última palavra é a única arma que resta a um orgulho ferido por um coração partido. Antecipo-as, como tantas outras vezes antecipei o que lhe ia na alma. Eterna maldição dos frios e calculistas.
Por fim parece ter o discurso pronto e bem afiado. Interrompe a marcha imperial e eu ponho-me a jeito dando-lhe toda a atenção e pondo o ar culpado mais inocente que consigo. Dá meia volta e diz ininterruptamente, sem oscilações na voz: “Espero que sejam muito felizes, tu e eles, porque ninguém mais neste mundo vos há-de aturar”. Previsível, mas não dói menos por isso.
Volta a dar meia volta e faz o seu corpo moreno dançar dentro do seu vestido, calculadamente largo, deixando-me com as memórias das curvas e formas que durante tanto tempo me deixaram embriagado, as formas que o vestido largo esconde, deixando os outros, insistentemente, a adivinhar, enquanto acelera novamente o passo e sai de cena.
A pálpebra do meu olho direito treme continuamente. Sorrio, não com o meu habitual sorriso desafiador e ligeiramente aberto, mas antes um sorriso cínico que esconde uma lágrima. Pois a minha pálpebra não treme sozinha, toda a minha existência treme com ela, fruto de mais uma enorme desilusão da qual o único culpado é o mesmo filho da puta de sempre. Eu.

Penso por breves instantes na minha primeira amante, uma mulher descomplexada, experiente, com uma beleza bem acima do meu potencial e um bolso que parecia não ter fundo às vontades de um puto de dezasseis anos. Por mero acaso, vim a descobrir que era amiga da minha mãe mas essa história fica para depois, mais para a frente. Pensei no conselho que ela me deu na altura: “Se queres mesmo ser feliz, não sejas de uma mas de todas e dá-lhes o amor que me dás agora. Eu conheço-te e és igual a mim, nunca serás verdadeiramente de ninguém. Somos demasiadamente apaixonados por nós próprios. Se fores contra a tua própria natureza espera-te uma vida de sofrimento e incompreensão, perguntas sem resposta, caminhos sem saída. Dá o amor que sabes e não o que fantasias”.

Na altura ri-me, ainda novo demais para perceber que todas as verdades que preciso e viria a precisar me foram ditas pelas mulheres da minha cama (dizer da minha vida seria uma terrível ampliação de uma realidade, já por si, distorcida). Na altura ri-me, sim, e limitei-me a dar-lhe a única coisa que mais tarde vim a perceber, à custa de frases horríveis, tão verdadeiras, que me foram atiradas em tom de vingança e destruição, ser a única que tenho para oferecer a uma mulher: prazer sem compromisso. Por todas menos uma.

Sento-me na rede, tentando ainda perceber tudo o que se acabou de passar e sobre tudo o que já se passou. Deixo descair o meu corpo, lentamente, até este tomar as formas do pano imundo e coçado pelo tempo, deixando então que este me envolva plenamente no seu morno e familiar abraço. Pego na minha fiel companheira, uma pequena caixa de madeira oriunda de Marrocos e entregue pelas mãos dela, da única. Abro a caixa e deixo os meus sentidos serem absorvidos pelos aromas das montanhas do Atlas, das florestas Canadianas, do calor húmido das Caraíbas, da chuva gélida de Amsterdam que disfarça o odor do sangue derramado no Afeganistão. Fabrico, habilmente (ou não fosse muita a experiência) um poço de esquecimento. Dou-lhe luz e deixo-me ser guiado pelo nevoeiro que entretanto desceu sobre mim, imaginando que a cada inspiração e expiração dou um impulso em direcção ao limbo, para um espaço intemporal e de fantasia onde os meus pensamentos voam livres de censura.

9 comments:

Drifting Along said...

You are truly gifted my brother.
It's nice to see you around and to meet your inside.
:)

il lato nero said...

Posso até estar a generalizar, mas parece-me que as mulheres conseguem desprender-se do passado melhor que os homens. As mulheres passam por várias desilusões na vida, caem, e levantam-se e se fôr preciso com a ajuda da mão estendida de outro homem. São raras as mulheres q se metem em relações sem q seja um investimento para o futuro, mesmo que efémero. E mesmo q no inicio se convençam de q será uma relação puramente física, a verdade é q mentem a si próprias e mais tarde se apercebem disso (normalmente tarde demais).
As mulheres, mesmo depois das desilusões amorosas, por muitas q sejam, não deixam de dar uma hipótese ao próximo q aparece.
Já a maioria dos homens que são apelidados de mulherengos, ou "cabrões" como são muitas vezes chamados por nós mulheres, têm sempre escondida neles a história de uma mulher q os marcou, de tal forma q é uma ferida q não sara.E q os impede de dar hipóteses de aproximação de outra mulher.
Essa mulher mais velha q te disse "sê de todas as mulheres" e q tanto tens em conta, apenas te desejou o vazio q ela sente. Porque agora te culpas da tua solidão, mesmo q rodeado de mulheres com quem tens casos ocasionais.

Texto muito bonito e pessoal - admiro a honestidade.

Essays on Idleness said...

Obrigado pelo teu comentário tão bem pensado. Concordo com grande parte do que disseste (ainda que também eu não goste de generalizar). Discordo contigo na tua análise à mulher mais velha, mas respeito a tua opinião. A minha, quem sabe, saberás um dia, se algum dia conseguir acabar o livro e for do teu interesse lê-lo.

Volta sempre.

Anonymous said...

gosto de te ler, escritor maldito. escreve mais.

Anonymous said...

Comecei a ler este texto, primeiro calmamente a pensar que seria uma passagem de um livro que tinhas lido e com o qual te identificavas mas à medida que ia lendo mais queria saber quem seria o autor tão genial e como se chamava este livro que eu ia já comprar. Quando por fim, descubro que é teu. Parabéns! Continua... Quero ler-te mais.
Beijos Sónia

Essays on Idleness said...

wow! estou sem palavras e encarnado que nem um tomate.

Obrigado, e sim, espero escrever mais, mas não está a ser fácil..

Vai passando por aqui :) beijos

Violet said...

Fiquei triste quando li estas palavras. Por vezes a´"última palavra" são restos de uma dignidade ferida. Para permanecermos em pé quando o equilíbrio é periclitante resta-nos esse tal sabor de vingança (retirarmos a nossa amizade é a única arma com que podemos ferir a quem nos tirou tudo o resto....)
Parabéns pelo post, pelo blog....

Anonymous said...

Enchemos uma vida de vontades e batalhas perdidas..e o que se ganha anda desgarrado na vulgar lamúria dos dias.
É fácil querer ser feliz, mais difícil é saber sê-lo .. ainda que ninguém saiba ao certo o que isso significa

Sabes? Acredito que lá no teu intimo saibas que "ela" disse a verdade..entendes bem o porquê, porque continuas tu a preferir a solidão interior. Compreendo, de certa forma, compreendo-te... you know ;)

aguardo ansiosa por esse livro =) kiss*

Anonymous said...

Pensei se comentava ou não, normalmente encontro blogs de mulheres, reflexões femininas, o nosso lado da história...nunca o vosso, na maior parte das vezes limito-me a ler e remeto-me ao meu silêncio!
Não consegui não comentar e dizer que acabo de me cruzar com alguém como tu, que talvez tenha que viver para si mesmo não se prendendo a nada nem ninguém por muito que pareça realmente apreciar-me por tudo o que sou, não que o verbalize constantemente mas há coisas que o olhar é incapaz de esconder, e esse olhar torna-se tantas vezes mais verdadeiro que muitas palavras...
Já quis muito acreditar que ele seja um "cabrão", não sei se ainda embevecida pelo que sinto e não consigo deixar de sentir,já me irritei e praguejei mas...
As minhas ultimas palavras foram as de que desejava que fosse feliz, muito feliz e que descobrisse que é tão melhor do que ele próprio se julga...Sairam do coração não por cliché mas porque o sinto, porque de todos os estados de espirito que não consigo dominar este é o que sempre prevalece... Há em mim o egoismo de que essa felicidade chegue apenas quando eu me tiver libertado, mas não deixo de querer vê-lo bem e feliz só não quero sofrer, deixar de ter vontade de fazer o que amo e ficar apática para a vida durante o processo de cura da minha dor...
Acho que me estiquei, acho que nem sempre consigo falar e achei que um desconhecido com o outro lado da moeda podia ser uma boa opção...
Qualquer que seja a tua escolha para a vida, a dele também...que vos faça realemente felizes, afinal os padrões de felicidade não tem que ser o mesmo para todos...:)
Tudo de bom*